André de Carvalho é o único brasileiro em comitê que vai debater a diplomacia da ciência na América Latina e no Caribe
Construir redes para conectar cientistas e tomadores de decisão não é tarefa simples nem para os mais experimentes cientistas da computação. Porém, esse é um dos desafios que o professor André de Carvalho decidiu enfrentar. Pesquisador do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, Carvalho foi selecionado para uma vaga no comitê criado pela Rede Internacional para Assessoramento Científico Governamental (INGSA, na sigla em inglês) especialmente para debater os desafios da diplomacia da ciência na América Latina e no Caribe.
Ele e mais cerca de 60 pesquisadores e gestores públicos se reuniram em Buenos Aires, na Argentina, de 28 a 30 de junho, para participar do Wokshop da América do Sul para Assessoramento Científico Governamental, organizado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva da Argentina em conjunto com a INGSA e a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAI). Financiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pelo Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento, o evento analisou as contribuições que a ciência pode prover para o aprimoramento de políticas públicas em diferentes áreas, além de promover uma troca de experiências entre os participantes e discutir os desafios que devem ser enfrentados.
Segundo o professor Carvalho, as atividades do centro estão muito ligadas a uma área conhecida por diplomacia da ciência, que tem crescido em importância nos países desenvolvido nos últimos anos: “A Unesco possui várias iniciativas para fortalecer a diplomacia da ciência e a AAAI possui um centro dedicado ao tema. A diplomacia da ciência estimula a colaboração científica entre países, por considerá-la parte essencial da política externa na era do conhecimento”. O professor conta que, na época da Guerra Fria, era comum existirem militares como membros de embaixadas e consulados. Atualmente, em vários países, eles vêm sendo substituídos pela crescente presença de diplomatas cientistas.
No início de agosto, Carvalho recebeu a notícia de que havia sido escolhido para fazer parte do seleto comitê, que conta apenas com oito membros. Ele é o único brasileiro a fazer parte do time, do qual participam dois cientistas argentinos, dois chilenos, uma colombiana, uma peruana e uma venezuelana. Diretor do Centro de Aprendizado de Máquina em Análise de Dados (NAP-AMDA), Carvalho também é vice-diretor do Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI) e ganhou o Prêmio Jabuti em 2012 na categoria Tecnologia e Informática, com o livro Inteligência Artificial: Uma Abordagem de Aprendizado de Máquina.
Nesta entrevista, o professor fala sobre a relevância de participar desse comitê recém-criado pela INGSA, dá exemplos de como a análise de dados pode ser relevante para a construção de políticas públicas mais bem-sucedidas e explica como pretende promover a diplomacia científica no Brasil.
Qual a relevância de se tornar membro do comitê criado pela INGSA especialmente para a América Latina e para o Caribe?
A INGSA é uma instituição internacional que procura fortalecer os laços entre academia e Estado. Isso é muito forte no Reino Unido, lá todo primeiro ministro tem um cientista chefe que faz essa interlocução. Ele não vai responder a todas as dúvidas do primeiro-ministro e aconselhá-lo sozinho. Sua função é saber quem, na comunidade científica, pode ajudar o governo a resolver certos desafios. A ideia é dar soluções científicas, baseadas em evidências, para a solução dos problemas enfrentados por um país. A INGSA também possui importantes contribuições na diplomacia da ciência. Esse tipo de diplomacia já é realizado de forma efetiva no Reino Unido, na Nova Zelândia, no Japão e no Canadá. Algumas embaixadas, pelo menos dos países mais desenvolvidos, contam com um cientista. Porque muitas discussões que ocorrem entre os países estão relacionadas a descobertas científicas, colaborações, patentes e propriedade intelectual.
No workshop de que você participou na Argentina houve exemplos de como a diplomacia da ciência pode contribuir com o desenvolvimento dos países?
No workshop, houve várias atividades práticas. Por exemplo: imagine que está acontecendo uma catástrofe em um país, como a epidemia do zika vírus. Como o cientista pode sugerir ao governo políticas para lidar com esse problema? É claro que os gestores públicos não vão, necessariamente, seguir os conselhos dos cientistas, mas pelo menos precisam saber que os cientistas podem ajudar a resolver esses problemas, com base científica. É necessário reconhecer que os governos podem tomar decisões baseadas em evidências.
Quais são os principais desafios no começo dessa sua nova jornada?
A primeira questão é sensibilizar o governo para a importância de ouvir os cientistas e sensibilizar os cientistas para que contribuam mais com o governo na solução dos problemas que afetam a população. Não adianta convencer só uma dessas partes. Em vez de ficarem discutindo entre elas, precisam entender que uma parte precisa da outra e que, no final, é o país que se beneficia dessa relação. Então, talvez esse esforço já possa criar uma consciência maior no país da importância dessa interlocução. Nesses países onde a diplomacia da ciência é bem estabelecida, há uma forte comunicação do governo com a academia de ciências dos países. Nós temos uma academia de ciências aqui no Brasil, a Academia Brasileira de Ciências (ABC), que pode ser um importante interlocutor do Estado.
Existem algumas ações que você pretende desenvolver aqui no Brasil para promover essa aproximação entre cientistas e gestores públicos?
Primeiro, minha intenção é discutir com a ABC essa iniciativa da criação do comitê da INGSA. Depois, vou procurar interlocutores no governo, não só no âmbito Executivo, mas também no Legislativo, para mostrar que existe essa necessidade de conectarmos academia e Estado. Porque isso acaba beneficiando a população inteira, com melhores políticas públicas para a saúde, para lidar com catástrofes que possam ocorrer e para planejar o futuro também. Quer dizer, não sou eu quem vai tomar decisão nenhuma, eu só quero ajudar a conectar essas duas pontas.
Poderia dar alguns exemplos sobre como a área científica em que você atua, o campo da ciência de dados, pode contribuir com o desenvolvimento de políticas públicas mais bem-sucedidas?
Os cientistas de dados podem, por exemplo, avaliar dados para fazer predições de catástrofes ou de epidemias. Outra possibilidade é a análise de dados educacionais, que nos permitem avaliar as ações que estão trazendo bons resultados e as que precisam ser realizadas de outra forma. É assim que podemos chegar a conclusões do tipo “a gente está indo mal porque estamos fazendo assim e outro país está indo muito bem porque está fazendo de outro jeito”.
A análise de dados também é fundamental para planejarmos o futuro e melhorar alguma política pública que não está dando certo. Por exemplo, atualmente, a segurança no Rio de Janeiro é um problema muito grave. Então, podemos estudar os dados e empregar técnicas de ciência de dados para propor uma nova política pública. Existem várias pesquisas que aplicam técnicas de ciência de dados para analisar a segurança. Mas esses estudos ficam restritos à academia e não chegam ao conhecimento dos gestores públicos. Isso não tem que ser uma iniciativa de um governo, tem que ser uma atitude do Estado, você não pode ficar à mercê do governante da vez.
Você acredita que, se houvesse uma política de Estado para a ciência, não estaríamos passando pela atual crise de falta de recursos?
Eu acho. Porque o governo hoje está olhando a ciência como se fosse um luxo. Não enxerga a ciência a longo prazo. Isso também tem a ver com a forma como alguns políticos pensam o País, enxergando apenas a curto prazo, a próxima eleição. Precisamos pensar a longo prazo e levar em conta toda a população, em vez dos nossos próprios interesses. Eu sempre penso que a gente tem que olhar primeiro para o mundo, depois para o País, a seguir para o Estado de São Paulo, para a universidade e, só então, para nós mesmos. No entanto, as pessoas fazem o contrário.
Na sua opinião, a falta dessa diplomacia da ciência contribuiu para chegarmos à crise de credibilidade que a área vive hoje em âmbito mundial?
Sim. Quando existe uma crise econômica, por exemplo, os gestores públicos nem levam em conta chamar um cientista para ajudar a pensar na direção que se deve seguir. As decisões são baseadas no que o político pensa e não em conceitos sólidos da ciência, em evidências. A ideia é termos uma governança mais baseada em evidências do que em dogmas, é isso que alguns países desenvolvidos estão tentando fazer. E isso é olhar a longo prazo também. Não adianta gerar riqueza se você destrói o planeta, se as pessoas não têm boa qualidade de vida.
Muitos cientistas estão deixando o Brasil porque não estão enxergando uma perspectiva futura promissora no campo da ciência. Você vê de maneira otimista o futuro da ciência no nosso país?
Sim. A gente não pode largar nosso país para deixar que o destruam. Eu não critico quem quer sair do Brasil, mas por outro lado você pode trabalhar para mudar o nosso país. Eu entendo os dois lados. No entanto, posso apontar exemplos bem-sucedidos, como o da Nova Zelândia. O país está crescendo, a população tem qualidade de vida. Como eles estão conseguindo fazer isso? Estão usando a ciência. Quando surgiu um boato de que um vulcão entraria em erupção lá e haveria um grande terremoto em uma determinada cidade, a população entrou em pânico. O que o governo fez? Chamou o comitê de cientistas que o assessora para pedir sugestões. A proposta desse comitê foi enviar a equipe do governo para aquela cidade no dia previsto para a tragédia acontecer. Dessa forma, eles passaram a mensagem para a população de que confiavam nos cientistas, os quais diziam que não haveria erupção nem terremoto. Com todos os ministros na cidade, a população foi tranquilizada.
Durante a última reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, alguns cientistas lançaram a ideia de criar um partido político no Brasil em prol da defesa da ciência. Você acredita que essa é a melhor solução para a atual crise?
Eu acho que não. Porque esse partido político seria setorizado. Nesse caso, precisaríamos ter um partido para cada tema importante para a população. Na minha opinião, a preocupação com a ciência e o apoio aos cientistas precisam existir em todos os partidos.
Fontes: Denise Casatti / Assessoria de Comunicação do ICMC e Jornal da USP
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