Dezenas de mortos e centenas de desaparecidos – a grande maioria formada por funcionários próprios e terceirizados da Vale. Após a tragédia humana, o impacto ambiental e social sobre aqueles que têm alguma relação com a cidade de Brumadinho (MG), a mineradora brasileira vem sendo surrada pelo mercado de capitais desde a última sexta-feira, quando a Barragem I da Mina de Córrego do Feijão, composta por rejeitos, transformou seu entorno em um gigante lamaçal.
No primeiro dia de negociações na B3 após a tragédia, os papéis ON (ação ordinária) da Vale caíram 24,52% e puxaram para baixo o índice da bolsa paulista, que encerrou o pregão com queda de 2,29%. Quem também sentiu os reflexos na bolsa paulista foi o Bradespar, um dos principais investidores da empresa, que terminaram o pregão com uma baixa de 24,49%. Com a retração no valor das ações, a Vale perdeu R$ 71 bilhões em valor de mercado entre quinta-feira (último pregão antes do acidente, já que sexta-feira foi feriado na cidade de São Paulo) e ontem, quando terminou o dia valendo R$ 220,305 bilhões.
Segundo a consultoria Economática, os R$ 71 bilhões de desvalorização em um único dia representam a maior perda de valor de mercado de uma empresa cotada na bolsa brasileira nos últimos 10 anos. Para efeito de comparação, o montante equivale ao valor total de uma companhia como a Suzano. Em maio do ano passado, no auge da greve dos caminhoneiros, a Petrobras viu seu valor de mercado encolher R$ 47,3 bilhões.
Para especialistas, esse comportamento deve se prolongar até que o caso de Brumadinho perca fôlego. Até lá, fica difícil prever quão fundo pode ser o buraco e quanto as ações da Vale poderão desvalorizar.
Gigante entre as empresas globais de mineração, a Vale passou por uma reestruturação societária em 2017 que colocou fim à Valepar e resultou em uma pulverização das ações no mercado, explica Marcelo Marchesini, coordenador do Programa Avançado em Gestão Pública do Insper.
Com os papéis pulverizados, diz o especialista, qualquer incidente tem imediatamente efeito negativo no preço das ações, como o visto agora. “E se o incidente não vier a ser investigado seriamente e o assunto sumir das manchetes, levando a empresa a adotar de novo uma lógica de priorizar a qualquer custo seus resultados, é de se esperar que as ações voltem a subir.”
DANO À IMAGEM Mas, diferentemente do que se vê no mercado de capitais, Marchesini acredita que a reação da sociedade será bem diferente, com um dano à imagem da Vale sendo percebido por muito mais tempo. “Isso vai exigir da mineradora uma série de ações mais estruturantes de compromisso não só com as vítimas desse incidente, mas a demonstração para as comunidades onde atua, para governos e sociedade de uma forma geral que as suas preocupações com seus impactos vão se sobrepor a essa preocupação com o lucro”, avalia Marchesini.
Nessa disputa, tende a ser vitoriosa a decisão apoiada por uma ação governamental. Se o poder público decidir ser mais rigoroso quanto à legislação e fiscalização dos negócios de mineração, a Vale deve se ajustar, mesmo com o risco de ser multada e ter recursos apreendidos. Se o governo tomar medidas leves ou flexibilizar as regras, sua recuperação será rápida.
“O impacto para a sociedade é relevante demais para o governo lavar as mãos. A política ambiental tem um peso importante entre acionistas, por isso vai ser tão importante que decisão será tomada sobre o aspecto regulatório, do contrário, veremos a pressão por resultados no mercado de mineração ter um impacto sobre as questões ambientais”, diz Marchesini.
Logo depois do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, no final de 2015, as ações da Vale, sócia da BHP na Samarco (dona daquela operação) também perderam valor. Mas a memória dos investidores foi curta e os papéis da empresa negociados na B3 valorizaram 258% desde o desastre até quinta-feira (24), um dia antes do caso de Brumadinho. No dia da tragédia, a queda foi de 2,6%, subindo no dia seguinte para 7,5%.
OUTRAS FONTES Apesar das proporções do caso de Brumadinho, o professor do Ibmec-DF e sócio da Valorum Gestão Empresarial, Marcos Sarmento Melo, pondera que o impacto financeiro nos cofres da companhia, ainda que seja significativo, não é algo que venha a ameaçar o futuro da companhia, que continuará na trajetória de expansão.
Mesmo com o alto valor bloqueado até agora pela Justiça (entre decisões e liminares, essa soma já chegou a 45% do caixa da empresa), o especialista lembra que a Vale tem outras fontes de recursos, além da unidade de Brumadinho, para manter sua operação. “Se for necessário, a empresa vai procurar outras fontes para obter esses recursos”, afirma.
Para Sarmento, a tendência é que a cotação das ações da Vale continue a cair nas próximas semanas, à medida em que aumentar o número de vítimas e a verdadeira dimensão do impacto ambiental, além da evolução das negociações com os agentes públicos e com a Justiça. “De uma forma geral, a expectativa é que depois que a empresa sair do noticiário, haja uma recuperação paulatina do seu valor”.
Outra ponderação feita por investidores nesse momento é que a participação da operação de Brumadinho no total de negócios da Vale não é tão relevante. Além de explorar outras minas no Brasil, a companhia tem negócios fora do Brasil, o que pulveriza os riscos em situações como a enfrentada agora.
A queda da produção é insignificante para a Vale, diz Sarmento. Por isso ele acredita que a mineradora voltará ao valor de mercado de antes, “nas não vai passar incólume por isso, porque provavelmente a legislação será alterada com a pressão da sociedade e do Estado. Se houver uma alteração nas regras de armazenamento de rejeitos, por exemplo, a empresa terá se se adaptar e haverá um aumento de custo. Por isso sempre é muito mais barato prevenir”.
Fábio Astrauskas, professor e CEO da consultoria Siegen, avalia que a tragédia de Brumadinho causará uma percepção diferente entre os investidores da Vale, que agora passam a avaliá-la como uma empresa reincidente. Com o episódio da última sexta-feira, comenta, “não dá mais para a empresa manter em seu discurso que se trata de um evento isolado”.
Para Astrauskas, que é formado em Engenharia de Minas, os dois casos – Mariana e Brumadinho – não são desconexos. Eles são consequência, analisa, de uma decisão da empresa de buscar resultado para os investidores. “A estratégia da atual gestão parece cada vez mais clara quanto à opção por uma atividade lucrativa às custas de manter seus ativos sob risco. Essa crise certamente será longa.”
O consultor acrescenta ainda que as tragédias ocorridas sob a gestão da Vale nos últimos três anos “não foram por acaso. Aconteceram por uma estratégia deliberada de colocar a atividade de exploração acima do possível e os investimentos em manutenção abaixo do necessário. A empresa aumentou o risco para lucrar mais. Prova disso são os lucros crescentes nos últimos anos.”
NOVA DIREÇÃO Presidente da República em exercício, Hamilton Mourão declarou ontem que o governo poderá estudar a possibilidade de destituir a atual diretoria da Vale. Atualmente, a União tem participação na empresa por meio do BNDESPar, que não é o maior acionista da empresa. Uma forma de trocar os executivos da mineradora, segundo Vicente Machado especialista direito público, seria por meio da intervenção do poder público na empresa, conforme prevê a Constituição Federal, que ocorre quando há um prejuízo causado à coletividade por uma ação de forma predatória.
O assunto poderá ser levado ao grupo de crise, montado pelo governo para administrar o acidente em Brumadinho. “Essa questão da diretoria da Vale está sendo estudada pelo grupo de crise. Vamos aguardar as linhas de ação que eles estão levantando”, disse Mourão.
Quem tem participação na Vale
Empresa Participação em % – ações ON
Mitsui 5,42
Litel Participações 19,14
BNDESPar 7,60
Blackrock Inc. 5,98
Bradespar S.A. 6,30
Outros 52,08
Ações/Tesouraria 1,65
Fonte: B3/Empresa
Nos EUA, a ira dos investidores
A Vale vai ter de enfrentar não apenas a pressão de familiares de vítimas do acidente de Brumadinho (MG), do poder público, da Justiça e das ONGs ambientais. Ontem, somaram-se a essa lista dois escritórios de advocacia dos Estados Unidos. Eles vão acionar a Justiça naquele país com ações coletivas contra a mineradora brasileira depois das perdas causadas aos investimentos por conta do rompimento da barragem de rejeitos na última sexta-feira.
O escritório Rossen Law publicou nota em seu site comunicando que está preparando a ação coletiva “para recuperar as perdas sofridas pelos investidores da Vale”. Segundo o escritório, está sendo feita uma investigação para saber se a companhia brasileira pode ter “emitido ao público informações de negócios materialmente falsas”.
O escritório Tha Schall deve entrar com uma ação coletiva semelhante. Ele informou que também está investigando se a Vale divulgou “informações falsas e enganosas” aos acionistas que posam ter omitido os riscos com a barragem de Brumadinho.
Se isso aconteceu, ficará caracterizada uma burla às regras do mercado de capitais americano. A mineradora negocia na Bolsa de Nova York os chamados American Depositary Receipt (ADR), recibos de ações que apresentaram uma queda de 8% ao final da última sexta-feira. Ontem, o recuo foi de 17,90% até o fechamento desta edição.
Esse cenário, lembra o professor do Insper, vai depender da reação do governo à crise em Brumadinho, qual será o seu comportamento sobre as regras para fiscalização desse tipo de projeto e a punição da companhia. A Vale, com um controle pulverizado, lidará com pressões de toda ordem, mais do que se viu na época do acidente em Mariana (MG), em novembro de 2015. Uma parte vai continuar a exigir resultados a todo custo, outros pressionarão por um maior comprometimento ambiental.
Fonte: EM
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