Publicado originalmente no Medium – por Fabricio Pamplona
Essa foi a impressão de todos que acompanharam a reunião da ANVISA sobre o início do processo de consulta pública sobre 1) o cultivo de Cannabis para fins medicinais e 2) o registro de medicamentos contendo ativos canabinoides. A votação foi unânime e teremos uma iniciativa regulatória de ambos os temas. Começamos com o pé direito.
Já era hora da agência sair de cima do muro e finalmente se posicionar a respeito do tema, que tem potencial para impactar literalmente milhões de brasileiros, e atualmente está na ordem do dia pros milhares de pacientes brasileiros e suas famílias, além dos empreendedores pioneiros que pretendem iniciar negócios no ramo em nosso país. Fora isso, os players habituais do mercado farmacêutico, que estão de olho nisso faz tempo.
Mas que cara tem uma eventual regulamentação brasileira?
Os desafios de se regular um mercado como o brasileiro são enormes, e aparentemente o texto vai na direção de trazer oportunidades para grandes players, já que os alicerces fundamentais do texto que vai à consulta pública são muito similares aos usados para a indústria farmacêutica.
Esse sempre foi nosso questionamento, ao sabermos que os técnicos da ANVISA haviam realizado uma verdadeira peregrinação pelos países onde há uma regulamentação do uso medicinal como Canadá, Israel, Uruguai e mais recentemente, Portugal. No Canadá, eu mesmo tive a honra de visitar algumas facilities de produção, com cultivos indoor e em greenhouse e ver com meus próprios olhos as reações dos técnicos aos locais e processos. Além do cultivo, houve contato com pós-processamento da planta (secagem, poda, trimming), extração, embalagem, rotulagem e despacho de produtos.
Por tudo que vivenciei na época, apostava que teríamos algo na linha do Canadá, dado a ótima impressão que os sítios de produção das empresas que visitamos deixaram nos técnicos da ANVISA. Pudera, no Brasil ao temos a infeliz ideia da “maconha prensada paraguaia” quando pensamos em Cannabis. Quem visita um local de produção em países regulados sabe que a história pode ser muito, mas muito mais profissional. E com qualidade condizente com um produto de saúde.
Ainda assim, há muitos caminhos regulatórios possíveis. Há desde exemplos como a Espanha ou Argentina que permite clubes canábicos, há quem não liber, mas faça vista grossa para o cultivo individual como o Holanda, quem permita o uso médico geral e irrestrito, mesmo da forma fumada, como Israel e quem se volte mais à produção industrial como Canadá e Portugal.
Pelo visto hoje, o marco regulatório brasileiro vai se aproximar bastante do modelo canadense (como eu de certa forma já esperava), com uma quedinha ainda maior pro lado de desenvolvimento clínico a lá indústria farmacêutica. Digo que já esperava pelo seguinte: a maior preocupação demonstrada pelos técnicos durante as visitas eram nos aspectos de segurança e rastreabilidade, ambos visando evitar o possível desvio do material para fins ilícitos ou recreativos. Afinal, da perspectiva da agência, trata-se de um produto controlado e com finalidade exclusivamente medicinal. A possibilidade de desvio do material produzido poderia colocar em xeque a iniciativa regulatória e trazer problemas diplomáticos ao Brasil.
O nosso país tem uma responsabilidade imensa, porque embora não tenha sido pioneiro, e perdido a dianteira do processo para outros países como Uruguai, Argentina, Colômbia, Chile e México (ou seja, quase todos os outros relevantes), o Brasil ainda é considerado o melhor mercado, dado seu tamanho continental. Então, a regulação aqui pode influenciar amplamente o cenário da Cannabis na América Latina.
Quero saber dos detalhes
Pelo tudo que ouvi hoje, ficou claro que não há muito espaço para pequenas iniciativas no Brasil. As características apresentadas na reunião de hoje mostram que os produtos à base de Cannabis no Brasil em muito se assemelham a um medicamento comum, a única flexibilidade será um processo de registro facilitado.
As características principais:
- Cultivo exclusivamente em locais fechados (somente indoor? Aham)
- Cultivo exclusivamente para pesquisa ou produção de medicamento
- Não será possível a comercialização de flores, apenas de produtos derivados, em formas farmacêuticas padronizadas (comprimidos, cápsulas, líquidos orais, etc)
- O padrão de qualidade é o mesmo que se exige para medicamento
- Há necessidade de garantia de estabilidade dos produtos, para definição do prazo de validade e condições de armazenamento
- O armazenamento dos produtos deve ser realizados em câmaras refrigeradas fortificadas
- O produtor precisa ter um plano de segurança validado pela ANVISA
- Para registro, haverá necessidade de relatório de segurança e eficácia não clínica e clínica, além do racional de desenvolvimento clínico
- Contudo, esses podem se basear em dados de literatura para apoiar segurança e eficácia, além da eventual experiência de mercado do produto com mesmo principio ativo e mesmas condições de uso.
- Produtos comercializados em outros países podem apresentar evidências de farmacovigilância como dado de segurança
- Pode-se registrar produtos inovadores com estudos de fase 2 concluídos e fase 3 em andamento, ou sem fase 3 se não for tecnicamente possível (desde que devidamente justificado). Esta “flexibilização” é particularmente aceita para indicações clínicas para as quais não haja terapia disponível.
- Curiosamente, aceitam-se insumos ativos de origem vegetal ou sintética. Os medicamentos resultantes serão classificados de acordo e devem seguir as regras específicas para registro de fitoterápicos, sintéticos ou específicos, seguindo as normas já vigentes.
- Pode-se condicionar o registro ao cumprimento e apresentação de dados adicionais listados em um termo de compromisso pós-registro
- Como se fala em registro de medicamento, salvo engano, a venda será somente em estabelecimentos farmacêuticos
Na minha análise, ficaram substancialmente prejudicadas iniciativas de:
- Cultivo caseiro ou associativo, embora talvez associações consigam atender certos requisitos de qualidade se forem apoiadas por laboratórios analíticos. Ainda assim, haverá uma forte necessidade de investimento e capacitação profissional.
- Farmácia de manipulação não devem conseguir autorização para trabalhar com os produtos, uma vez que só se fala em produtos registrados. Na verdade, houve uma menção direta à exclusão desse tipo de estabelecimento. Talvez seja algo provisório. De toda maneira, é algo a se pensar, visto que é comum a necessidade de individualização de dose e tratamento mais personalizado.
- Empresas genuinamente nacionais terão desvantagens num primeiro momento, a não ser que tenham parceiros internacionais. E haverá possibilidade de produção ou importação de insumos farmacêuticos canabinoides, mesmo na ausência de cultivo no Brasil.
Aquela imagem acima exemplifica o que se espera do ambiente produtivo de Cannabis para uso como insumo farmacêutico ativo. É por aí que está rumando a regulamentação do setor no Brasil. Eu acho positivo em termos de qualidade, mas claramente restritivo em termos de quem vai conseguir alcançar esse patamar sanitário, que diga-se de passagem, não é exigido para nenhuma outra planta medicinal. Claro que a Cannabis não é uma planta comum, e além de tudo, é uma planta proscrita, cujos componentes são controlados. Então, justifica-se a fiscalização ostensiva…
Da maneira como foi colocado, a produção será literalmente em uma espécie de bunker. Será indoor, e muito bem protegido. É um desperdício dos recursos naturais brasileiros (condições climáticas), mas talvez seja apenas um primeiro passo mais cauteloso que sustente uma política duradoura e evite surpresas desagradáveis. O Canadá começou exatamente assim, e agora já temos produções de centenas de toneladas em estufas. Começamos com o pé direito, e é melhor caminhar do que ficar parado. Eu vejo com bons olhos essa iniciativa. Na verdade, hoje foi um dia histórico, pra se anotar no caderninho.
Fontes: Fabricio Pamplona e Green Science Times
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